terça-feira, 12 de agosto de 2008

Nouvelle Vague parte 5

Os dias de glória - Chega Godard


Depois do estrondoso sucesso que a Nouvelle Vague conheceu no seu ano de “estréia”, o revolucionário movimento cinematográfico e artístico iria conhecer dias de glória. Anualmente os vários realizadores do movimento mostravam ao mundo os seus novos trabalhos, fazendo filmes a um ritmo alucinante. Parecia que o sonho de Rivette se iria finalmente cumprir. O que não veio a acontecer. Mas entre 1959 e 1963, a Nouvelle Vague estava nas nuvens.


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A Bout de Soufle


Trazer o cinema dos estúdios abafados para as ruas. Nunca Paris e a província, foram filmados com tamanha liberdade. Abandonar as adaptações literárias pesadas e adaptar pequenos fait-divers como ponto de partido, ou explorar mesmo a mais fértil imaginação dos novos autores, era uma das palavras de ordem. Trocar os atores do sistema por uma nova vaga de nomes que iriam dar corpo ao espírito da Nouvelle Vague. Revalorizar o papel do corpo humano, da face, do olhar, da expressividade física, na forma de compor uma imagem. Valorizar cada vez o papel da banda sonora, não como acompanhamento do filme mas, essencialmente, como complemento da própria narrativa. Explorar as diversas linguagens do cinema, os planos-seqüência, os travellings, o cinema direto.


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Jean-Luc Godard


Tudo isto chegou em 1959 com os primeiros filmes da Nouvelle Vague. Até lá, poucos eram os autores que o faziam já. E esses, tinham sido elogiados durante anos, nas páginas dos Cahiers, por aqueles que agora os “imitavam”, questionando assim o próprio sistema.
E se o ano 0 da
Nouvelle Vague tinha sido um sucesso absoluto, os anos seguintes viriam a revelar-se bastante prolíferos. Tudo isto seria explorado até ao limite, levando, no final, a múltiplos caminhos que cada realizador se dedicaria a aprofundar ao longo da sua carreira.
O público tinha ficado agradavelmente surpreendido com a frescura de filmes como
Os Incompreendidos, Les Cousins ou Hiroshima Meu Amor, e quando, no ano seguinte, os mesmos autores voltam à carga, agora acompanhados pelo talento irreverente de um Jean-Luc Godard, as salas voltam a encher-se. É verdade que em números bastante inferiores aos sucessos comerciais da época, e também é verdade que muitos filmes não saíam do circuito urbano. Mas mesmo assim era um primeiro passo positivo.
Estamos portanto em 1960, ressaca do sucesso inicial, quando surge
Godard e com ele Acossado. Escrito por François Truffaut, curiosamente, este filme é um dos ícones da Nouvelle Vague. Por transmitir exatamente tudo o que foi dito acima. Nunca Paris fora filmada desta forma por ninguém. Nunca uma história, tão simples e mundana, pareceu ser criada com tanta humanidade. Notavam-se claramente as influências de Fuller e Ray no filme, mas também de Houston e do seu O Segredo das Jóias ou de Preminger e do notável Bom Dia, Tristeza.


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A Bout de Soufle


De qualquer forma, Acossado é um marco. Não é só o ponto de partida da filmografia “godardiana”, como é também a prova de que um filme da Nouvelle Vague era não só um filme artístico, como também, um filme de sucesso.
Apesar de ter sido ostracizado em Cannes, e nos demais certames,
Acossado foi claramente um sucesso. Não só confirmou o talento de Jean Seberg , como apresentou ao mundo Jean Paul Belmondo, que a par de Jean Pierre Leaud, seria um dos ícones do movimento. Só mesmo George Sadoul, que até tinha abraçado com entusiasmo a nova vaga de cineastas, se mostrava ainda de pé atrás com o estilo irreverente, iconoclasta e completamente inovador do cinema de Godard. Mas mesmo esse se iria render mais tarde aos talentos do cineasta, aguando da estréia de Viver a Vida.


Os dias de glória - O umbiguismo, Rivette, Truffaut e claro, Godard


Se Godard se tinha estreado em grande, que dizer de Jacques Rivette, outros dos críticos dos Cahiers que se decide a passar à realização e embarca no espírito dos cineastas-cinéfilos...


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Jacques Rivette


Em 1960 o seu filme de estreia, Paris Nos Pertence, é um sucesso estrondoso, um dos maiores do ano, e afirma de imediato Rivette com um dos grandes talentos da Nouvelle Vague, especialmente pela forma desprendida como conta história, e como filmes os espaços abertos de Paris, em planos riquíssimos de pormenores subtis, muitos deles captados de forma magistral dos telhados da cidade. Rivette juntava-se assim a Chabrol, Godard, Resnais e Truffaut.


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Em 1961 assistiu-se ao afirmar de uma nova tendência desta Nouvelle Vague. Apesar de terem praticamente abandonado os Cahiers, para se dedicarem à realização, a verdade é que, pontualmente, os críticos Truffaut, Godard, Chabrol, Rohmer e Chabrol voltavam à redação da revista. Mas agora escreviam, não só sobre os cineastas-autores que apreciavam, mas também sobre eles próprios. Era vulgar ver Godard a elogiar Truffaut, Rohmer a dizer bem de Chabrol, ou todos a reverenciar Resnais. Mais, nos próprios filmes destes jovens autores, há constantes referências aos filmes dos colegas. Godard por exemplo, só em Uma Mulher É Uma Mulher, a sua obra-prima maior e o seu segundo filme, faz a apologia de dois filmes de Truffaut. O recém-estreado Atirem No Pianista, e Jules e Jim, que estava a ser rodado na altura, contando com um cameo de Jeanne Moureau. Além do mais, o próprio Godard fazia publicidade a ele mesmo, ao referir por várias vezes nesse mesmo filme, e curiosamente pela personagem interpretada por Belmondo, o seu filme de estreia, nada mais nada menos que Acossado.


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Esta tendência “umbiguista”, muito semelhante a uma espécie de “Escola do Elogio Mútuo” que Portugal conheceu no campo literário dos meados do século XIX, foi rapidamente criticada. Não pelo fato de se referirem aos filmes, mas sim por faze-lo sempre de forma tendenciosa. De fato, a Truffaut não valeu de nada os elogios de Godard ao seu Atirem No Pianista. O filme – uma homenagem ao cinema noir – seria um desastre completo – o primeiro filme da Nouvelle Vague a sê-lo de fato – e causaria profundas mudanças na forma como Truffaut abordaria a partir de então, a criação cinematográfica. Este acabou por ser o primeiro aviso, numa época de vacas gordas. Truffaut, astuto, percebeu-o. A partir de então vai escolher cuidadosamente os seus projetos, dividindo-os entre as comédias de cariz mais comercial, como foi a saga de Antoine Doinel, que irá retomar no ano seguinte, entre filmes mais pessoais, que irá desenvolver no final da década de 60 e nos anos 70, e na adaptação literária de várias obras norte-americanas, que resultarão em filme como A Sereia do Mississipi.


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Quem parecia imparável era mesmo Jean-Luc Godard. Depois do sucesso de Acossado e de Uma Mulher É Uma Mulher – que traz à ribalta outras das caras-ícone da Nouvelle Vague, Anna Karina – consegue com Viver a Vida, impor-se como um cineasta de eleição. Neste filme, visualmente arrojado e já com alguns traços experimentais, anunciando o que se seguiria, Godard quebra regras e convenções e proclama o seu amor pelo rosto da mulher, marca central deste filme, e de muitos dos seguintes. Rosto esse que seria encarnado habitualmente por Karina, agora sua mulher, mas também por B.B. no inesquecível O Desprezo. Esse acabaria por marcar o opúsculo dos dias de glória da Nouvelle Vague, juntando vários elementos desta escola num só filme, no que viria a tornar-se num dos títulos chave da época.


Os últimos grandes êxitos


Com Truffaut a agir com mais precaução como produtor independente, para além de argumentista e cineasta, seria difícil imaginar o sucesso de Jules e Jim, filme de 1962 que é também uma das obras mais notáveis da época.


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Jules et Jim


Filme de época – o primeiro filme de época feito pelos jovens cineastas, que sempre manifestaram uma predileção pelo “agora” – este retrato de um tridente amoroso de contornos trágicos no início do século, traria ao mundo alguns dos momentos mais espantosos do cinema da Nouvelle Vague. Dizer que Jules e Jim é poesia visual é dizer verdadeiramente pouco. Com desempenhos notáveis de Jeanne Moureau e Óscar Werner – que voltaria a trabalhar com Truffaut anos mais tarde – o filme proporcionaria a Truffaut mais um grande sucesso, voltando a mostrar o vigor da Nouvelle Vague.


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Claude Chabrol


Quem também conseguiu explorar bem este período de ouro do movimento foi Claude Chabrol. Entre 1960 e 1963 o realizador vai assinar três filmes notáveis, extremamente bem conseguidos, todos eles capazes de resumir um pouco o espírito de Chabrol, muito influenciado pelo cinema hitchcockiano, sempre com marcas de suspense, tendo como pano de fundo a província francesa. Mulheres Fáceis, Les Godelureaux e Ophelia são marcos do cinema dessa época, ajudando a consagrar desde logo o jovem cineasta como um dos mais prolíferos daqueles dias.
Alain Resnais, que como sabemos sempre manteve um estilo muito peculiar, volta a criar um belíssimo ensaio sobre o passado, a morte e o esquecimento, no complexo e intrigante O Ano Passado em Marienbad. Filme extremamente poético, onde a paisagem, o jogo de espelhos e os habituais travellings fazem a diferença, O Ano Passado em Marienbad colecionou vitórias nos certames desse ano, confirmando Resnais como um realizador de exceção. Talvez por isso, o desastre de Muriel (ou Les Temps du Retour), em 1963, fosse premonitório do descalabro que se seguiria.


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L´Anne Dernier Á Marienbad


Aproveitando a boleia dos cineastas, Jacques Doniel-Volcroize, Jean Rouch ou Jacques Demy, começavam a ter bastante sucesso junto da crítica e do público. Era a época da afirmação do “gaulismo” em França, com o qual, estranhamente (ou talvez não), a Nouvelle Vague foi imediatamente associada. E como se previa, uma associação tão publicitada, como aconteceu com a imprensa da época, teria as suas conseqüências quando o gaulismo começou a ruir, naquele mítico ano de 68. Mas por estranho que pareça, a Nouvelle Vague começou a cair muito antes disso. Estávamos em 1963. Godard tinha feito O Desprezo, que apesar de tudo, não foi o sucesso que se esperava, tendo em conta que por lá andava Bardot. Resnais tropeça pela primeira vez na sua carreira e Truffaut passa o ano em claro. Era a vingança do sistema!


O Fim do Sonho


Os primeiros anos tinham sido de festa. Os últimos seriam de tristeza. A partir de 1963 o público divorcia-se definitivamente dos jovens autores, rendendo-se por completo ao cinema produzido pelo sistema. Os distribuidores começam a impor as suas condições aos cineastas, e os que resistem acabam por ver as suas obras confinadas aos cine-clubes. As produtoras voltam a assumir o papel de destaque na produção dos filmes e o cinema da Nouvelle Vague vai-se desmembrando em pequenas tendências, cada qual com um autor como porta-estandarte. O Maio de 68 deu o golpe de misericórdia num doente já em estado terminal.


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Eric Rohmer


Quem imaginaria que a Nouvelle Vague passaria dos céus aos infernos em tão pouco tempo. De fato, o movimento conheceu uma estreia fulgurante mas nunca conseguiu verdadeiramente manter-se no topo. As suas pequenas produções independentes davam lucro, mas as receitas de bilheteira eram muito inferiores aos filmes da indústria. O público começava cada vez a torcer o nariz ao cinema de autor, e eram cada vez mais os cinéfilos e os inteletuais que compunham o pouco público que iam visitando os filmes da Nouvelle Vague.
Cedo os distribuidores perceberam que chegara a hora da desforra. Desde o primeiro momento que a Nouvelle Vague era um ataque direto ao seu poder no seio da indústria. O sucesso inicial dos primeiros filmes dos jovens lobos tinha deixado desarmados muitos dos distribuidores, que não tinham outra opção senão exibi-los. Com o desinteresse progressivo do grande público, a desculpa que eles precisavam tinha finalmente caído do céu. Rapidamente começaram a exigir dos jovens autores o que exigiam dos filmes da chamada Tradição de Qualidade. Supervisão do argumento, decisão sobre o final, opinião na escolha do elenco, sugestão de estrelas para cada filme, lucros nos resultados de bilheteira. Ou seja, tudo o que ia contra o espírito da “Política de Autores”, que tão afincadamente os jovens tinham defendido alguns anos atrás.


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Claude Chabrol


No início, como era natural, a maior parte dos cineastas bateu o pé. Uns conseguiram sobreviver à margem do sistema. Ou porque tinham dinheiro para investir por conta própria e podiam dar-se ao luxo de correr riscos (Truffaut), ou porque já tinham o seu nome plenamente consagrado, o que lhes dava certas liberdades no panorama cinematográfico da altura (Godard). Mas a grande maioria viu-se confinada a exibir os seus filmes para uma diminuta audiência. Das grandes salas da Gaumont, os filmes de autores como Chabrol ou Rivette passaram para os cine-clubes de Paris e da província, onde poucos realmente podiam apreciar verdadeiramente as suas obras. Sem orçamento para contrariar o sistema, pontualmente, alguns destes realizadores faziam filmes mais comerciais, para conseguir dinheiro para produções mais pessoais . Outros encontraram refugio na televisão. O meio começava a expandir-se junto do grande público e os filmes criados para a televisão eram claramente uma realidade na França dos anos 60. Para lá rumaram Rohmer, Chabrol e Resnais, em busca de melhores dias para voltarem a criar o cinema de autor que tanto defenderam. Para Rohmer o seu período áureo chegaria nos anos 70. Para Chabrol haveria uma momentânea redenção no virar da década, mas muito pouco para quem prometia tanto. Também Doniol-Volcroize foi “obrigado” a procurar novos rumos para o seu trabalho, isto enquanto nomes como Rouch, Marker e Resnais afastam-se definitivamente de um cinema consensual na busca de agradar ao grande público, sem fugir a um conceito artístico, acabando por procurar explorar de diversas formas a linguagem cinematográfica, em tons mais modernistas (ou até mesmo classicistas) e mais virados para o conceito de cinema-verité.


Godard e Truffaut sobrevivem


Se Rivette ainda faz A Religiosa em 1966, e se Demy se vira para o musical mais comercial, com o sucesso que se conhece nos seus dois exemplos mais felizes – Os Guarda-Chuvas do Amor e Duas Garotas Românticas – a verdade é que até 1968, a Nouvelle Vague irá subsistir, junto do grande público, nos filmes de Godard e Truffaut.


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La Religiouse


Não que esses filmes sejam os melhores da época no que diz respeito aos trabalhos que os autores da Nouvelle Vague continuaram a desenvolver, quer na televisão, quer num circuito alternativo e independente. Mas estes foram os unicos cineastas que puderam continuar a dizer presente, e a ombrear com os filmes da indústria e os filmes estrangeiros – especialmente de Hollywood – que inundavam as salas de cinema à época. E se já vimos que Truffaut se tornou cauteloso, financiando mais filmes do que propriamente realizando, mesmo assim há neste período um belíssimo ensaio cinematográfico em Fahrenheit 451, que prova que Truffaut vive.
Godard continua igual a si próprio. O seu O Pequeno Soldado, que tanta polêmica tinha criado pelo seu pendor anti-guerra – e na altura o fantasma da Guerra da Árgelia estava ainda bem presente – continua a explorar a sua paixão por tudo o que é cinema, paixão essa que Band À Part, Une Femmes Est Marrié e, acima de tudo, O Demônio das Onze Horas, vão confirmar por completo. Para Godard o cinema não é só som, é também mudo. Para Godard a cor tanto pode ser vermelha, como azul, como verde. A luz preferencialmente natural, pode criar múltiplas ilusões. E o discurso não tem de estar preso a nada. É a imagem que comanda o filme, é o espírito de iniciativa do autor que dá o mote, não palavras atadas a uma folha de papel. Tudo isto está reunido em O Demônio das Onze Horas, manifestamente a obra que fecha a Nouvelle Vague, como foi inicialmente apresentada.


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Jean-Luc Godard


A partir de 1966 a Nouvelle Vague irá desmultiplicar-se. Cada um dos autores, no espaço que tanto varia entre o cinema de ficção, o documentário, a curta-metragem ou os tele-filmes, vai tentar explorar a sua própria linguagem. E se até 1968 há uma espécie de negação do final do movimento como algo uno, a verdade é que a polêmica em Cannes, o Maio de 68 em Paris, o ”golpe de estado” na redação dos Cahiers e a cisão definitiva entre Truffaut e Godard, levando este último em busca de um cinema-verité, como Vertov tinha ensaiado quarenta anos antes, vão dar o mote para o correr do pano do movimento mais ambicioso e mais importante do cinema no pós-década de 50.


continua...

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