terça-feira, 12 de agosto de 2008

Nouvelle Vague parte 10

Filmes Que Marcaram a História : Acossado - Grito de liberdade


Talvez o pior que possa acontecer a alguém é ver Acossado hoje. Este é um filme – que apesar de todos os seus traços de genialidade e rebeldia, que anunciavam já o Godard que todos conhecemos – que devia ter sido visto em 1960, e apenas aí. Porque esta afirmação quase blasfema?



Porque tudo o que o filme representa, tudo o que filme traz, é revolucionário. E nunca se olha da mesma forma para um filme na altura do seu lançamento e quarenta e cinco anos depois. Se Acossado é um tratado sobre liberdade, sobre o amor, sobre a irreverência humana e sobre Paris – e essencialmente um tratado sobre a Paris que ninguém conhecia – na época, o filme era muito mais do que isso. Era um marco histórico. Era um grito explosivo, um assinalar definitivo da presença da Nouvelle Vague no mundo do cinema. Era o afirmar do anti-herói, das heroínas traiçoeiras e hesitantes. Era a apologia dos espaços abertos, da luz natural, dos pequenos pormenores do dia a dia. Era um verdadeiro grito de liberdade do cinema.



Talvez a própria concepção de Acossado seja a base de tudo isso. Escrito por Truffaut, que se inspirou num fait-divers que tinha lido à pressa num jornal a caminho de Cannes, o filme nunca teve um guião definitivo. Godard escrevia de manhã as cenas que iria rodar à tarde, mantendo em suspenso tudo e todos, dando um toque verdadeiramente genuíno a toda a história. E apesar da história, em Acossado é ela que importa? Importa-nos realmente saber se Jean Seberg ama Belmondo ou se este vai chegar a Roma? Já sabemos as respostas antes sequer que elas se formulem na cabeça das personagens. Aqui – como na maior parte dos filmes de Godard – não é o argumento, a narrativa que conta. É a forma como se lá chega. É que plano é usado, que efeitos o realizador aplica a cada cena. Importa mais o momento – um dos momentos únicos na história do cinema – em que Seberg surge, em plenos Campos Elisios, a vender o New York Herald Tribune, do que saber se Belmondo é um ladrão sem escrúpulos e que vai acabar por ser apanhado. Não há moralismos em Godard. Há poesia na forma como ele apresenta Belmondo, nos primeiros cinco minutos mais trepidantes da história do cinema. Há garra, emoção, no mesmo plano onde as personagens descansam sobre uma cama e se perguntam sobre a sua própria existência. Há janelas abertas, sempre a impelir a câmara a voar para as ruas, para o mundo que se passeia lá por fora, um mundo muito maior e mais complexo do que uma pequena história de um gângster malandro, mas com bom coração.



E depois há o traço de cinéfilo, que Godard manterá sempre nos seus filmes, o traço de homenagem ao cinema. O gesto de Belmondo, qual Humphrey Bogart em tons francês. A cara de Seberg, que nos leva imediatamente para o universo de Preminger. E todo o ritmo, toda a paisagem, toda a dança entre a noite e o dia, entre as ruas e os pequenos apartamentos, que são um claro piscar de olhos ao cinema noir de série B, que tanto era cara à Nouvelle Vague.
Hoje ver
Acossado já não é a mesma coisa. Não há a frescura da primeira vez.
Hoje não se vê um objeto revolucionário, um objeto contra o sistema. Hoje vê-se um filme do sistema. Um filme de culto, um marco da história, um filme premiado, eleito e tudo o mais. A magia inicial perdeu-se. O que nos resta? Os planos, a música inesquecível, os desempenhos, os travelling pelos Campos Elisios, enfim, tudo aquilo que fazem com que o filme seja, acima de tudo, cinema!

O Melhor - O ritmo trepidante.

O Pior - Não ser um filme intemporal.

Curiosidade - Truffaut escreveu Acossado para Godard, depois de ter lido um caso semelhante no comboio que apanhou para o Festival de Cannes de 59.

Realizador - Jean-Luc Jean-Luc Godard
Elenco - Jean Paul Belmondo, Jean Seberg, ...
Duração - 87 m
Elenco - m/12



Filmes Que Marcaram a História : Hiroshima Meu Amor - O Peso da Memória


É difícil decidir o que nos espanta mais nesta longa-metragem de estréia de Alain Resnais. Se o início, quase em registo documental, que nos dá talvez o retrato mais cru e mais realista (com todos os problemas que o termo traz à baila), do que realmente se passou em Hiroshima quando Washington decidiu que uma bomba (ou duas) resolveria o problema bicudo que dava pelo nome de guerra do Pacífico...



“Tu na rien vu a Hiroshima!”


Poderia ser isso, ou poderia ser, por outro lado, o magnífico texto – pura poesia em tons de prosa – que Margarite Duras oferece a Resnais, para que este coloque palavras, frases, sentimentos, emoções tão poderosas, e, ao mesmo tempo, tão humanas, na boca dos seus dois atores. Não que Emmanuelle Riva e Eji Okado sejam atores fabulosos, porque dificilmente encontramos outros filmes que corroborem essa tese. Mas neste filme eles apresentam-se de forma sublime, tanto como atores, esses homens e mulheres capazes de falsear o mais puro dos sentimentos fazendo-o parecer mais realista do que a própria realidade, mas essencialmente, como peças no tabuleiro de xadrez que é este maravilhoso conto sobre a memória humana.



E esse é o ponto central de Hiroshima Meu Amor. Como já o tinha sido antes para Resnais e continuará a sê-lo, muitos anos depois. É a sensação de dor, de sacrifício, de perda que pauta o ritmo do filme. “Tu na rien vu a Hiroxima” é verdade. Mas é mentira! Ela viu-o, não em Hiroshima, mas na longínqua Nevers. Ele não o sabia, ninguém o sabia, mas as atrocidades da guerra não têm um local de peregrinação. Estão em todo o lado, estão em todos os que a vivem, de uma maneira ou de outra. Resnais pega no ícone do final da guerra, a arrasada Hiroshima, e mostra que não foi só aí que se sofreu. A memória humana é capaz de voltar para trás no tempo, mesmo quando mais custa, e lembrar-se do que sempre quis esquecer.
E não é por acaso que é
Resnais o mestre deste estilo de narrativa, extremamente humana e pessoal, introspectiva e analítica da alma humana. O seu estilo, a sua forma de filmar, a sua concepção de mise-en-scene, dão a Resnais os trunfos necessários para vencer esta partida. E os seus travellings – momentos de poesia verdadeiramente inesquecíveis, de quem Godard dirá que é tudo uma questão de “moral”. Moral sim, a moral de cada um, de quem filma e de quem vê, de quem respira cinema e o escreve de forma subtil mas engenhosa, e daqueles que contemplam, qual Mona Lisa, admirados com toda a sua simplicidade, e, ao mesmo tempo, genialidade.



Da história de Hiroshima Meu Amor há muito pouco a dizer. Há muito, é certo, mas não é expressável por palavras. Só pelos sons e imagens que escrevem o filme. Do trabalho dos atores, entre o sofrimento do passado e a tentativa – infrutífera, vã – de viver o presente esquecendo que se viveu para trás, pouco há a dizer. Há muito, mas o que importa está lá, na película. E de Resnais? De Resnais encarregou-se o tempo, a história, a arte de contar que ele foi – e ainda é – um dos maiores magos da concepção cinematográfica. A sua linguagem é a poesia em filme. O seu estilo, é a do pintor preserverante e genial. A sua marca, são os filmes que fez. E entre eles, nenhum se compara a este tratado sobre a dor, o amor, o sofrimento, e o passado dos homens.


O Melhor - Os travellings e o trio formado por Marker-Duras-Resnais que orienta todo o filme.

O Pior - Alguma indefinição na parte central do filme, onde ele quase que foge das mãos de Resnais, mas que no entanto segura-o com segurança.

Curiosidade - Esta seria a única vez que Resnais colaboraria com Marguerite Duras e Chris Marker em conjunto. A primeira foi parceira nos trabalhos seguintes, dando dicas e ideias de explorar o literário que há no cinema. O primeiro foi seu parceiro desde a primeira hora, mas na década de 60 decidiu seguir o seu caminho, com La Jetté e Sans Soleil a serem os pontos mais altos da sua filmografia.

Realizador - Alain Resnais
Elenco - Emmanuelle Riva, Eji Okado, ...
Classificação - m/12
Duração - 90 m



Filmes Que Marcaram a História : Os Incompreendidos - A Juventude do Cinema


Este é o primeiro grande filme da Nouvelle Vague. Um verdadeiro marco histórico, se tivermos em consideração que este seria apenas o primeiro passo de um dos movimentos mais importantes da história do cinema.


Ma Mère est mort!”


Os Incompreendidos é uma obra genial. Fica desde já acente que a estréia como realizador de longas-metragens de François Truffaut não poderia ter corrido melhor. Não só o realizador vai colocar em prática tudo o que tinha antes defendido como critico de cinema e defensor de um cinema de autor, como o faz com uma sensibilidade e um tato espantoso para quem se estreia na realização. Este é claramente um filme auto-biográfico, ninguém tem dúvidas disso, e talvez seja esse toque pessoal que torne este filme tão tocante. O jovem Antoine Doinel (numa performance soberba de Jean Pierre Leaud, a sua melhor enquanto Doinel), é alguém com que nos identificamos rapidamente. A “família feliz” que está longe de ser feliz, com um pai alienado da vida e uma mãe demasiado ambiciosa para a vida que tem, deixa o jovem Doinel quase asfixiado. Ele precisa de ser livre.



Mas, e neste ponto Truffaut é corrosivo ao abalar por completo duas grandes instituições da sociedade francesa (a família e a escola), também não é na escola que o jovem vai encontrar um espaço onde se adaptar. A escola de Truffaut é a escola de Jean Vigo em Zeron en Conduite (com que o filme partilha alguns planos em jeito de homenagem). É uma escola atrasada, uma escola castradora. Truffaut vinga-se aqui claramente dos dias mais difíceis da sua infância, e ao trazer Doinel para as ruas, para os espaços abertos – longe do cubículo que é a sua casa e da lúgubre escola – dá também uma força e vitalidade ao filme, que ajuda e muito a desenvolver a tensão dramática. O cinema, sempre o cinema, marca também a sua presença, como local de escape, como local onde o sonho e as primeiras paixões (a foto de Harriet Anderson), são ainda inocentes e belas. Como autor que é, Truffaut faz de Os Incompreendidos (traduzido lamentavelmente por 400 Golpes quando o que a expressão quer realmente dizer é “Trinta por Malinha”), uma verdadeira poesia visual. Para isso usa uma série de travellings, de planos picados e contra-picados, e experimenta também o uso da câmara em movimento, fundamental para dar maior dinâmica à narrativa.



O abandono, o desencanto, a desilusão, o desenquadramento, são as marcas dominantes da primeira metade do filme. Ao contrário dos minutos finais, onde a esperança, a liberdade e o futuro dão uma reviravolta total ao filme. Um piscar de olhos ao cinema da época talvez, com um Truffaut critico ao sistema – educacional, mas que também podia ser o sistema da indústria cinematográfica – e só o cinema nos permite estas comparações – e um desencanto com a família, talvez aqueles de quem Truffaut esperaria mais. Mas, num rasgo de gênio, Les Quatrecents Coups é mais sobre a esperança e sobre o futuro do que propriamente sobre o passado.



Num dos mais brilhantes planos finais da história do cinema,Truffaut deixa a porta aberta para o que se seguiria. Num piscar de olhos ao próprio movimento a que dá inicio, Truffaut não fecha Os Incompreendidos. Deixa-o em aberto, para mostrar que este era só o primeiro passo. O resto estava para vir. E o resto, era a Nouvelle Vague.


O Melhor - A idéia genial e a câmara nas mãos de Truffaut que passa de "melhor critico de cinema francês" para "um dos maiores realizadores europeus de sempre". Uma evolução digna de registo.

O Pior - Em alguns momentos nota-se uma inexperiência, que Truffaut vai aclimatar com o passar dos anos.

Curiosidade - Vários planos do filme foram filmados tendo por inspiração direta Zero en Conduite de Jean Vigo. Descubram quais!

Realizador - François Truffaut
Elenco - Jean Pierre Leaud, Claire Murier, Albert Remy...
Produtora - Le Carrose D´Or
Classificação - m/12
Duração - 94 m


continua...

Nenhum comentário: