terça-feira, 12 de agosto de 2008

Nouvelle Vague parte 2

As Inspirações - A Cinemateca Francesa


Não houve influência maior. Aliás, seria praticamente impossível imaginar a Nouvelle Vague sem este verdadeiro templo de cinema. Um templo venerado e adorado por todos os jovens da época. Um templo que lhes ensinou todas as escrituras, desde os evangelhos oficiais – Renoir, Rossellini, Welles – aos escritos apócrifos – Fuller, Ray. Templo que seria profanado na quente primavera de 68, uma época onde o pouco que havia de Nouvelle Vague se começou a desmontar. Peça por peça.


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Dirigida por Henri Langlois – um dos “pais espirituais” da Nouvelle Vague – a Cinemateca Francesa surgia na continuação da idéia dos cineclubes, idéia essa que Louis Delluc – um dos primeiros realizadores avant-garde franceses – colocara em prática em 1921. É nos meados dos anos 30 que Henri Langlois começa a deitar mãos à obra para recuperar o espírito dos cineclubes, que tinha decaído com a chegada do sonoro à Europa. Mas só com a libertação de Paris é que os cineclubes florescem, aproveitando para recuperar “o tempo perdido” com os anos da ocupação. É nessa época que Langlois – que tinha conseguido manter toda a sua coleção durante a ocupação – criará a Cinemateca. Em 1948 abre as portas, abrindo assim um verdadeiro novo mundo aos muitos cinéfilos que já passavam horas nos pequenos cineclubes de Paris. Entre eles estavam os veteranos André Bazin, Alexander Astruc ou Jacques-Doniel Volcroize, mas essencialmente os jovens lobos. Truffaut vivia literalmente na Cinemateca, ele que tinha tido uma triste infância – que recuperará mais tarde no seu primeiro filme – vendo mais de três filmes por dia. Godard junta-se a ele. Também lá estão Rivette, Chabrol, Resnais, Marker, e tantos outros. E o que viam eles?


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Henri Langlois


Langlois cedo percebeu a importância do que criara. Decidiu então programar a Cinemateca para verdadeiramente mostrar todo o cinema. Mas um cinema não de entretenimento e meramente comercial. Para isso haviam todas as outras salas de Paris. Era cinema-arte, cinema de vanguarda, cinema original. Sem o saber – porque o termo ainda não estava definido – Langlois criou o primeiro templo para os amantes do cinema de autor.
O diretor da Cinemateca planeava sessões duplas onde alternava um filme mudo com um filme sonoro, um western com uma comédia, um drama com um épico. E assim mostrava um pouco de tudo. E com o cinema do passado abria as portas para o cinema do futuro. Assim os jovens aspirantes a realizadores trocaram as aulas do
Institut dês Haut Études Cinématographiques, por dias e dias pregados nas cadeiras da Cinemateca .


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Citizen Kane estreou-se na Cinemateca, muito depois da sua data original


A valorização que fez do cinema mudo, junto de jovens que já tinham nascido na era dos talkies, tornou-se fundamental na compreensão da arte cinematográfica para os jovens cinéfilos. O mais influenciado por esta realidade terá sido Jean-Luc Godard, que em toda a sua obra percebe que pode haver cinema sem som, sem som síncrono, sem qualquer fronteira. E explorará essa realidade de múltiplas formas, sendo que O Demônio das Onze Horas é o melhor exemplo disso.
Entre filmes proibidos, filmes de países que alguns jovens nem sabiam que faziam cinema – os primeiros
Kurusawas, Ozus e Mizoguchis foram vistos na Cinemateca – filmes de vanguarda, documentais, de animação ou de ficção, os jovens, sentados nas cadeiras na frente ou mesmo no duro chão das salas, contemplavam extasiados a arte cinematográfica no seu esplendor. E foi aí que aprenderam a amar o cinema. E seria esse amor que os tornaria, primeiro, críticos acérrimos do cinema como arte, e depois, realizadores de um cinema sem fronteiras.


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Na Cinemateca Truffaut verá mais de 2000 filmes antes dos 25 anos


Sem a Cinemateca não teria havido Nouvelle Vague. Sem Langlois não haveria Godard. Sem o cinema de todo o mundo não se faria cinema para todo o mundo. E por isso, quando em 1968, o governo francês tentou exonerar Langlois, as fileiras cerraram-se. Por um momento os cinéfilos estavam todos do mesmo lado da barricada. E o “caso Langlois” despoletou o que se seguiria. Estávamos em Maio de 68, curiosamente, no ponto de chegada da Nouvelle Vague original.


As inspirações - Os Hitchcock-Hawksianos


É curioso que o termo Nouvelle Vague tenha sido originalmente criada para designar a juventude dos anos 50. O termo cinematográfico que melhor define os jovens membros desta escola é outro. Eles são, antes de mais, os Hitchcock-Hawksianos.


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E são-no porque é simplesmente na obra destes dois notáveis realizadores-autores – Alfred Hitchcock e Howard Hawks – onde eles vão buscar inspiração sobre a forma como se deve dirigir um filme, sob como se deve construir uma história. Sob como se deve dirigir atores. É toda a obra de Hawks – que vai desde o espantoso Scarface até Rio Bravo – e de Hitchcock – na sua fase americana mais do que na sua fase inglesa – que encanta os então jovens críticos dos Cahiers. E, no entanto, estes eram autores esquecidos em Hollywood. Os seus filmes eram verdadeiros sucessos de bilheteira – Hitchcock foi sempre dos realizadores mais rentáveis dos anos 40 e 50 – mas a critica norte-americana nunca percebeu as suas subtilezas na forma como construir a mise-en-scene, como explorar os espaços de câmara, os diferentes ângulos de uma narrativa. Talvez por isso nunca tenham recebido Óscares ou prémios do género. Pouco importa!


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Deste lado do continente os amantes de cinema estavam bem mais atentos. Devoravam os filmes destes autores como um esfomeado devora o seu primeiro alimento em dias. Catalogar Um Corpo Que Cai , Rio Bravo, A Sombra de uma Dúvida como menos de uma obra-prima era verdadeira blasfémia. Foi Truffaut, ao entrevistar Hitchcock, que conseguiu que lhe fosse atribuído o titulo – hoje repetido até à exaustão – de “mestre do suspense”. Conceitos como “MacGuffin”, desconhecidos de todos, passaram a ser palavras de código para os jovens autores. E seria exatamente na valorização da chamada “Politica dos Autores” – idealizada por Astruc e Truffaut – que estes nomes seriam vistos como fundamentais. Fazer um filme à Hitchcock significava ocupar o espaço com precisão, colocar a câmara no sítio certo, surpreender o público, criar uma narrativa consistente e dinâmica, e, acima de tudo, entender que a escuridão da sala de cinema é uma poderosa arma para o realizador. E fazer filmes à Hawks? Aí seria a sua paixão pelo humanismo das personagens, pelo jogo de emoções , mas também pelo jogo do espaço, o jogo do campo-contra-campo, dos grandes planos, conceitos que, a pouco e pouco, passaram a ter lugar de honra na cartilha dos jovens realizadores.


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Alfred Hitchcock


Apesar de Ray, Mann, Fuller, Rossellini, Renoir, Ophuls, Vertov ou mesmo Rouch e Cocteau, estes dois nomes ajudaram a moldar o “espírito da Nouvelle Vague”. Foram eles que ajudaram a perceber a base da chamada “Politica de Autores” que confirma o realizador como autor moral de um filme. Foram eles que potenciaram a divisão dos Cahiers entre os MacMahonianos e os jovens da Nouvelle Vague, que tomaram para si o epíteto de Hitchcock-Hawksianos. Foram eles que abriram as portas para um cinema onde a forma se reveste de grande importância, mas onde o conteúdo não é esquecido.
Truffaut filmará sempre a pensar como Hitchcock faria aquela cena. Quando isso acontece, não é preciso dizer muito mais.


As inspirações - Os teóricos de Cinema


Apesar de tudo, a inspiração da Nouvelle Vague não veio apenas dos filmes. Esses foram certamente a sua cartilha, a sua bíblia. Mas os jovens também beneficiaram dos úteis ensinamentos dos grandes teóricos da época.


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Andre Bazin


Filósofos, antropólogos ou amantes de cinema, amantes, críticos e teóricos, nomes que ajudaram a perceber como definir a linguagem do cinema. Todos eles com contribuições fundamentais para definir a teoria de cinema que esteve por trás desta corrente.
Acima deles todos – pelo seu papel nos
Cahiers – estava André Bazin. Mais do que director da revista que alguém um dia chamou de “Bíblia dos cinéfilos”, Bazin era acima de tudo um grande crítico de cinema e um teórico da linguagem cinematográfica. A sua análise aos filmes não se limitavam em falar do conteúdo ou de pequenos pormenores de produção e realização. Bazin sempre se preocupou com toda a concepção do produto artístico que para ele era um filme. E vendo o realizador como o verdadeiro autor, foi sempre à volta do ideal de liberdade da sua produção artística, que Bazin se bateu. Os seus escritos, a par dos ensinamentos de Gilles Deleuze, Alexander Astruc ou Edgar Morin – todos eles nomes fundamentais para a definição do cinema como uma arte com linguagem muito própria – foram fulcrais para criar bases de compreensão e análise nos jovens críticos de então. E, mais do que isso, para compreender as múltiplas faces do que era o cinema. Só assim se poderia defini-lo, com exatidão, como uma 7º Arte.

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Gilles Deleuze


Mas para além de Bazin, Deleuze ou Morin, foram igualmente importante o debate filosófico que se vivia na época. Debate entre Sartre e Camus, debate das ideias antropológicas de Levi-Strauss – essencial para perceber a revolução cultural que se desenhava – debate do próprio conceito de civilização ocidental. Um debate constante em França e que, naturalmente, se alastrava muitas vezes para o campo do cinema. O que obrigava os jovens cinéfilos a estarem atentos, a perceberem o que se passava à sua volta. Debate que os ajudou a formar uma verdadeira consciência crítica, e que também está por detrás da base do ideal dos autores cinematográficos e da própria produção artística da Nouvelle Vague, que apesar de “explodir” verdadeiramente em 1959, vai começando a ter, a meio dos anos 50, as primeiras provas do seu real valor e impacto futuro.


continua...

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