terça-feira, 12 de agosto de 2008

Nouvelle Vague parte 3

Escola Artística - Godard, Truffaut, Rivette e Rohmer experimentam


Resnais não é o único que começa a trabalhar entes de 1959, apesar de ser o autor mais prolífero. Entre 1955 e 1958 tanto Godard, como também Truffaut, Rivette e mesmo Rohmer, rodam uma série de curtas-metragens bastante interessantes, que funcionam essencialmente como testes para o que se seguirá.


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Jean-Luc Godard


Godard faz o seu primeiro filme em 55. Chama-se Operátion 'Béton', e é uma curta-metragem sobre a construção de uma barragem em França? Este, um filme de Jean-Luc Godard? Sim, parece estranho, mas isto era apenas o início. Ainda não havia um “estilo Godard” como não havia um “estilo Truffaut”. Seguir-se-iam Une Femme Coquette – sempre as mulheres nos filmes, nos títulos, na imaginação de Godard – e Tout Les Garçons s´appellent Patrick. Godard era então não só o crítico das “grandes frases” nos Cahiers, mas também um jovem realizador a explorar as diversas potencialidades da realização. E se entre todos os cineastas da Nouvelle Vague ele é o mais anárquico, o mais libertário, o mais exibicionista, o mais experimentalista, é porque, durante este período, Godard começou a perceber que o cinema é um todo que se pode desmultiplicar em pequenas peças. O som, a imagem, a montagem, a filmagem direta, o uso da cor, o papel da fotografia, os cenários interiores ou exteriores. Aqui começam a colocar-se as questões que durante os anos 60 Godard irá explorar ao limite, criando assim uma filmografia sem igual.
E quanto aos outros?


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François Truffaut


Truffaut trabalha afincadamente como critico mas ainda encontra espaço para colocar em prática todo o seu talento como argumentista, realizador e produtor. Depois de ter trabalhado como assistente de realização com Roberto Rosselini, o jovem escreve o argumento de Les Sumares de Doniel Volcroize em 1958, faz de figurante para Rivette em Le Coup du Berger e realiza Une Visite (1955) e Les Mistons, filme de 1958 que antecederá a sua primeira grande obra. Curiosamente tanto neste como depois em Os Incompreendidos, o jovem realizador irá trabalhar com crianças, algo que até então no cinema francês só tinha encontrado verdadeiro eco em Zero en Conduite de Jean Vigo. Além do mais Truffaut cria a sua própria produtora – Les Films du Carrosse – em homenagem a Jean Renoir e ao seu A Comédia e a Vida, e o seu casamento com Madeleine Morgenstein, filha de um dos maiores distribuidores de cinema francês, irá abrir-lhe as portas para divulgar mais tarde o seu trabalho, e os dos seus colegas já que ele será sempre o maior dos produtores da Nouvelle Vague, financiando mesmo vários filmes de Rohmer e Godard.
Mas o que importa reter é que já aqui, nestes primeiros trabalhos, se começa a desenhar a sinceridade e honestidade narrativa do realizador, mas também a sua paixão pelos clássicos, que se perceberá sempre pelos temas que aborda, e pela forma como conduz a história. Ao contrário de
Godard, o jovem Truffaut não é um autor de experiências. É alguém que cedo encontrou o seu espaço, e será dentro dele que se movimentará ao longo da sua carreira, andando sempre entre a adaptação literária, as comédias dramáticas da saga Doinel, e alguns retratos históricos profundos, sempre com a sua marca habitual de admiração pelos mestres do cinema, pelas mulheres, e pela liberdade do autor.


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Jean Rouch


Por sua vez Rivette também trabalha afincadamente. O realizador de Paris Nós Pertence – o seu primeiro grande trabalho – passa a década de 50 entretido em várias curtas-metragens, das quais se destacam Le Quadrille (50), Le Divertissemente (52) e Le Coup de Berger (56), onde, num espírito bem de Nouvelle Vague, todos os atores e figurantes são colegas dos Cahiers, de Doniol-Volcroize a Truffaut passando por Godard e Rohmer.
Eric Rohmer
que também começa a trabalhar como cineasta, fazendo em 1954 Berenice, seguindo-se filmes como La Sonate à Kreutz e O Signo do Leão primeiros trabalhos do autor de Pauline na Praia, considerado como o mais bucólico e naturalista dos realizadores da Nouvelle Vague.
Por essa altura, e mesmo não sendo declaradamente elementos da
Nouvelle Vague, os trabalhos de Jean Rouch em África (Les Maitres Foux de 1955 e todo o cinema-direto será uma das influências principais em Godard), de Agnés Varda, de Jean Cocteau, Jean Pierre Melville, de Roger Vadim (o seu E Deus Criou a Mulher vai servir como um alarme para todos os cinéfilos franceses em 1955), são experiências que os jovens acompanham com entusiasmo, bebendo delas os ensinamentos necessários para se prepararem para o que se seguiria. Uma revolução. Uma explosão. A liberdade!


Escola Artística - As primeiras obras - Alan Resnais


É do conhecimento geral que o ano 1 da Nouvelle Vague foi 1959. O ano de Os Incompreendidos em Cannes. O ano de Hiroshima Meu Amor, a consagração de Resnais. O ano que Godard começa a trabalhar em Acossado. O ano em que Chabrol apresente Um Vinho Difícil. Mas antes disso já havia Nouvelle Vague. Em pequenos trabalhos, pequenos esboços de puro talento dos jovens autores, que dividiam os dias entre a Cinemateca, os escritórios dos Cahiers e as primeiras experiências no cinema.


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Alan Resnais


Estas suas primeiras obras nunca chegaram ao circuito comercial, são na sua maioria curtas-metragens ou pequenos documentários, mas trazem já alguns elementos definidores da linguagem cinematográfica que mais tarde vão explorar em toda a medida nas suas longas-metragens.
Entre estas primeiras obras, há um cineasta que se destaca claramente.
Alain Resnais nunca foi verdadeiramente um membro da Nouvelle Vague. Não cresceu nos Cahiers, não pertencia ao grupo dos Hitchcock-Hawksianos. Trabalhava mais no setor alternativo, mais numa dimensão de artista plástico, na fotografia, na arquitetura e na escultura. Resnais trabalhava nessa época com Chris Marker, primo da geração da Nouvelle Vague, que lhe vai abrir horizontes na área do documentário alternativo. Marker fará mais tarde La Jetté, Le Jolie Mai ou Sans Soleil e afastar-se-á bastante da corrente mainstream dos seus colegas cinéfilos. Mas a sua influência artística estará sempre presente na época áurea de Resnais, que vai desde Guernica a O Ano Passado em Marienbad.


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Chris Marker


E mais. Estas curtas serão a base sobre a qual Resnais irá sempre trabalhar. Aliás – como dirá mais tarde Jacques Rivette na mesa redonda que os Cahiers promoveram a propósito da estreia de Hiroshima Meu Amor – não são as curtas que explicam o primeiro filme do realizador. É o primeiro filme do realizador que permite finalmente compreender o que Resnais queria contar com as suas curtas. E esses trabalhos de Resnais abrem em 1950 com Guernica. Belo trabalho de montagem, de jogo de luz, de fotografia, e, acima de tudo, carregado de idéias brilhantes sobre como contar o massacre de Guernica a partir da obra de Pablo Picasso. Pela primeira vez o realizador vai trabalhar o tema da memória, tema fundamental e obrigatório da filmografia de Resnais. E depois deste belíssimo trabalho visual – que antevê já o poeta visual que é Resnais, e que, muito por causa disso, será sempre amado por tudo e por todos – o realizador, que é claramente o primeiro grande autor da jovem geração, continua a experimentar a câmara e os jogos que esta proporciona – essencialmente o uso do travelling, do qual Resnais será sempre um dos maiores nomes, a par de Hitchcock ou Ford – na curta Tout la Memoire du Monde. Filme lindíssimo sobre a rotina da Biblioteca Nacional Francesa, que é mais um tratado sobre livros, sobre o livro, sobre o conhecimento humano, e sobre a recordação e a memória do ser humano.


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Os seus trabalhos continuam a encantar tudo e todos. A Tout La Memoire du Monde seguem-se Les Statues Meurent Aussi, Bibliotheque National e Van Gogh. Mas será em 1955 que Resnais atingirá o seu ponto mais alto na sua fase de produção de curtas-metragens e documentários. Este é o ano de Noite e Neblina, documentário sobre os campos de concentração nazis durante a 2º Guerra Mundial. Mas este é acima de tudo o documentário da poesia visual, e de novo, do esquecimento, ou melhor, do não-esquecimento do passado. Os momentos em que o nevoeiro substitui os campos de concentração (não é preciso mostrar para falar sobre algo) potenciam alguns dos maiores momentos cinematográficos da década.
E
Resnais continuará a crescer, a experimentar, antes do salto final que será Hiroshima Meu Amor.


Escola Artistica - Os temíveis distribuidores



A verdade é que na passagem de críticos para realizadores, os rivais da Nouvelle Vague foram-se alterando. Os críticos, antes ferozes rivais, hoje eram mais complacentes. O próprio Sadoul elogiou positivamente os primeiros trabalhos de Resnais, Godard e Truffaut. A critica generalista partilhou os primeiros anos de estados de graça da Nouvelle Vague. No início, enquanto tudo era rosas, os próprios cineastas e argumentistas “mainstream” mantiveram-se em segundo plano. Tudo isto mudaria a partir de meados dos anos 60, mas lá iremos.


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A verdade é que a explosão da Nouvelle Vague abriu as portas a dois novos rivais de peso: os produtores e os distribuidores.
Para os jovens cineastas a liberdade era essencial. Liberdade de criar, de produzir, de executar. Liberdade de distribuir. Liberdades a mais para a época. Daí o seu caráter revolucionário. E daí os problemas que se seguiriam. Os primeiros trabalhos de
Resnais, Godard, Chabrol ou Truffaut eram financiados por eles próprios, por vezes financiados entre eles, passando assim ao lado do sistema habitual de financiamento. Passando ao lado do peso dos sindicatos, poderosos e inimigos implacáveis. Passando ao lado das grandes produtoras. E depois de fazer o filme, havia que exibi-lo. E isso só acontecia, se cedessem aos distribuidores. Cedências financeiras, cedências artísticas. E isso eles não podiam tolerar. Corrompia toda a sua essência. E se essa era a sua esperança inicial, a verdade é que a realidade se mostrou bem mais cruel. Quando Jean-Charles Edeline, presidente da Federação Nacional de Cinema declara numa entrevista que “a festa acabou”, percebe-se finalmente que este é um rival demasiado poderoso para os jovens autores. A Nouvelle Vague vai progressivamente abandonar as salas comerciais para os circuitos alternativos.
E os que se vão progressivamente rendendo às exigências do mercado, vão aos poucos abandonando o ideal da
Nouvelle Vague. A partir de meados dos anos 60, poucos são os filmes dos jovens autores que se revelam um sucesso. Nos anos 70 raros são os que chegam a ser exibidos em salas comerciais. Por aí começaria o princípio do fim da Nouvelle Vague. A sua coragem em atacar de frente tudo e todos – cineastas, críticos, produtores, distribuidores – foi resultando aos poucos. Mas a certa altura esbarrou contra um muro de betão. Um muro que não pode ser ultrapassado. Ficariam na história, fariam história, ajudariam a construir uma nova história. Mas naquele momento tinham perdido.


Escola Artística - "O Caso Fuller"


Considerado como um autor para Truffaut e seus parceiros. Considerado como radical por Sadoul – e até mesmo, em certa medida por Bazin, na única vez que o “mestre” não esteve totalmente ao lado dos “discípulos”. Começou assim o "Caso Fuller".


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A polêmica começou após a vitória de Fuller no Festival de Veneza com o seu Anjo do Mal, que arrecadou o Leão de Bronze. Sadoul critica fortemente o filme “anti-comunista primário” e o seu realizador no Lettres Françaises. Depois desse filme, Bazin e Sadoul atacam ferozmente todos os filmes seguintes do realizador, começando com Tormenta Sob os Mares e Casa de Bambu.
E é aí que surge o jovem
Truffaut, defendendo com unhas e dentes o talento, arrojo e brutalidade de Fuller. Mas é quando Park Row e Anjo do Mal surgem mencionados na lista dos 67 filmes eleitos como os melhores para os Cahiers, desde 1937, que Sadoul se enfurece. O crítico escreve uma carta feroz aos diretores dos Cahiers, Bazin e Doniel-Volcroize, que respondem apaziguadamente. Mas a crise estava estalada, na medida em que os jovens lobos saltam em defesa do autor Fuller.
O peso de
Sadoul não era só o de ser o homem mais importante da crítica e estudo do cinema. Era também um peso político junto da Federação Francesas dos Cineclubes e da Associação Francesa de Critica de Cinema e Televisiva. O próprio assinava os textos como “historiador do cinema contemporâneo”, e entrar em guerra com ele, era algo que os diretores dos Cahiers quiserem evitar a todo o custo. Mas foi esta “guerra” que ajudou a moldar o espírito combativo e independente dos jovens da Nouvelle Vague. E foi a sua fidelidade aos autores, por oposição ao militantismo político – que só mudaria com o Maio de 68 – que os manteve unidos.


Escola Artistica - Os adversários, quem são?


Não há movimento artístico que não tenha apoiantes. E a Nouvelle Vague teve-os. Os autores que eles recuperaram, os críticos como Astruc ou Bazin, que perceberam que ali estava o futuro. Mas os seus grandes entusiastas acabariam por vir depois, já o conceito inicial da Nouvelle Vague estava meio enterrado. Seriam os cinéfilos que se apaixonaram por Truffaut, Chabrol e Godard, como estes se tinham apaixonado por Gance, Renoir e Vertov. Mas a escola artística teve também os seus rivais.


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Das produtoras francesas (os cineastas independentes sempre foram atacados pelos estúdios), dos distribuidores, dos críticos rivais dos Cahiers, especialmente os críticos de esquerda, dos argumentistas aos cineastas contemporâneos, a Nouvelle Vague só recebeu ataques. E mesmo o público, apesar de nunca ter sido um inimigo desta escola, não a amou como deveria, deixando muitas vezes as salas vazias, contribuindo assim para a sua progressiva queda.
Entre todos estes, os ataques foram muitos, constantes, e espaçados no tempo por fases. Numa primeira etapa, ainda a
Nouvelle Vague estava nos escritórios dos Cahiers, os jovens críticos eram inimigos ferozes dos argumentistas e realizadores franceses do chamado Cinema de Tradição de Qualidade. Era a época da “política dos autores” e dos manifestos de Truffaut. Depois, nos finais da década de 50, e com a ascensão no meio destes jovens, veio o lógico confronto de idéias com os restantes críticos. A ideologia no cinema, desculpa para atacar as diferentes percepções da construção cinematográfica, colocou Sadoul, o historiador “oficial” do cinema francês e o líder da facção de críticos de esquerda, contra os jovens críticos. Por fim, e a partir do momento em que os críticos se tornaram realizadores, os objetivos mantiveram-se os mesmos, mas os inimigos mudaram de cara. Agora, com o repentino sucesso da Nouvelle Vague, eram as produtoras e distribuidoras – afetadas diretamente pelo sucesso surpresa destas pequenas produções – que mais atacavam os jovens. Os críticos também não desarmaram, o público foi abandonando as salas, e o sonho foi-se desvanecendo.


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Alain Resnais foi o único cineasta da Nouvelle Vague que nunca foi criticado


Partindo numa análise cronológica, é fácil entender que os manifestos de Truffaut abriram as hostilidades contra quem fazia cinema em França, à época. Noutras publicações que não os Cahiers – nomeadamente a Positif e o Arts – os argumentistas como Jeanson e Aurenche – atacam ferozmente os jovens críticos, acusando-os de inexperiência e presunção, habituais nos jovens lobos com muita ambição e pouco talento. Será uma crítica sem grande impacto na evolução da Nouvelle Vague, mas um primeiro indício do que viria a acontecer com o passar dos anos. Aqueles que a Nouvelle Vague ultrapassasse – como Belmondo nos primeiros e inesquecíveis minutos de Acossado – iriam fazer tudo para os ultrapassar de novo. E se tal não fosse possível, pelo menos, ao menos que provocassem um despiste aparatoso.
Com os restantes críticos, o debate era inevitável, e apesar do ponto a que chegaram algumas discussões – sempre o “
caso Fuller” na linha da frente– era um debate necessário para definir posições. Os críticos da Nouvelle Vague eram tão extremistas como os críticos que se lhes opunham, e o confronto era inevitável. Confronto dentro dos Cahiers, entre os Hitchcock-Hawksianos e os Mac-Mahonianos, e confrontos entre as publicações. Na base da maior parte destas disputas intelectuais estava a forma como o francês olhava para o cinema americano. O neo-realismo italiano, o cinema soviético, as obras de arte de Bergman eram consensuais dos dois lados da barricada. Mesmo o próprio cinema francês, tão contestado nos Cahiers, também não era amado nas restantes publicações. Mas o cinema americano criava cisões, guerras e feridas difíceis de sanar. O confronto entre o cinema de estúdios e as produções dos autores, entre o cinema de Houston e o cinema de Hawks, mas acima de tudo, na forma como se aborda o cinema. Críticos como Sadoul preferiam um cinema militante, um cinema anti-sistema, um cinema como o de Mann, Houston ou Lang. Mas nos Cahiers a paixão pelo cinema de critica social não encontrava eco na militância política. E o amor que nutriam por Ray, Loosey e, acima de tudo, por Samuel Fuller, era criticado por tudo e por todos. Especialmente por Sadoul, que conotava o realizador norte-americano com a extrema-direita. Dizer que Fuller é de extrema-direita era irrelevante . Mas chegou para despoletar um dos grandes conflitos da época.


Escola Artística - Divulgar nos Cahiers


É natural que muitos confundam a Nouvelle Vague e os Cahiers du Cinema. Perfeitamente natural. Apesar da redação da revista de cinema mais célebre de todo o mundo não ser, à época, composta apenas pelos jovens que iriam dar origem a este movimento, eram eles os seus nomes mais sonantes. E, desde os primeiros momentos, foi este o seu suporte de eleição para divulgar a forma como viam o cinema.


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Aliás – excetuando um ou outro momento, especialmente o celebre caso de Samuel Fuller – os diretores originais da revista, André Bazin e Jacques Doniel-Volcroize, eram vistos como os patronos destes jovens lobos, ansiosos por mostrar o seu valor no complexo mundo do cinema.
André Bazin, notável pensador e cinéfilo francês, de quem Jean-Luc Godard disse uma vez ter sido “o maior de todos os críticos de cinema”, fundou a revista em 1951, juntamente com outros críticos da sua geração. Mas cedo as portas da redação da revista de capa amarela, como também era conhecida, se abriram aos jovens cinéfilos que lotavam diariamente a Cinemateca, e que queriam ter uma palavra a dizer sobre a sua grande paixão, a 7º Arte.


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Andre Bazin

Desde sempre que Bazin foi – até à sua morte a 11 de Novembro de 1958 – o coordenador de todo o projeto. As suas criticas eram as mais respeitadas, por todos os amantes de cinema em França, e não poucas vezes foi ele o mediador entre os jovens lobos e outros críticos do panorama cinematográfico francês, como Georges Sadoul. Ao seu lado na direção estava Jacques-Doniel Volcroize, critico talentoso e com aspiração a realizador, que apesar de ser dez anos mais velho que a Nouvelle Vague, cedo percebeu que era aquela a sua geração.
E depois houve os outros. E que outros!
Não fosse
François Truffaut um dos maiores críticos de cinema de sempre. Não fosse Jean-Luc Godard autor de frases fantásticas, tão carregadas de paixão como de sentido. Não estivesse lá a poesia de Jacques Rivette, a análise clínica de Eric Rohmer, ou o dedo subtil de Claude Chabrol, e não teria havido Cahiers, como não teria havido Nouvelle Vague.
Muitos outros críticos por lá passaram. Alguns, de costas voltadas para o grupo dos
Hitchcock-Hawksianos, mais tarde iriam tentar desforrar-se da geração da Nouvelle Vague, tomando controlo da revista, roubando-lhe assim o seu último bastião, o seu porto de abrigo. Mas durante dez anos, a verdade é que foi ali que se escreveu de forma sublime sobre cinema. Foi nas páginas da revista que se recuperaram nomes grandes como Otto Preminger, Alfred Hitchcock, Fritz Lang, Howard Hawks ou Jean Renoir, em longas dissertações ou entrevistas. Foi ali que Truffaut publicou os seus manifestos, onde Godard ensaiava a sua paixão pelo cinema. Foi ali que o “caso Samuel Fuller” começou, numa guerra temível entre Truffaut e Sadoul, não só a propósito de Fuller, mas, na verdade, a propósito dos ideais desta nova geração de cinéfilos, que seriam mais tarde associados – sem qualquer sentido – a Charles de Gaulle e à renovação que a França viveu no pós-58, e que tanto incomodava a critica contestatária. A essência dos Cahiers, era de discutir cinema. Mas durante esses 10 anos, sentiu-se cinema, para além de se ter escrito – e muito – sobre ele.


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Claude Chabrol e Jean-Luc Godard


Mais tarde, a morte de Bazin – primeiro – e a passagem dos jovens críticos a realizadores, abrandou o ritmo da revista. Uma critica que Henri Langlois faria mais tarde, numa entrevista a Eric Rohmer e Michael Mardore, para o número 135 da revista, em 1962. O diretor da Cinemateca já na altura antevia o que aconteceria alguns anos depois ao dizer que “O vosso (da Nouvelle Vague) drama foi terem perdido Bazin, terem perdido Truffaut, “o vosso critico”…o vosso erro, foi ter abandonado os jornais. Era preciso produzir e continuar jornalista.”
Sem o porto de abrigo que eram os Cahiers tudo foi diferente. Numa primeira fase, em que a direção alternou entre
Doniel-Volcroiz, Eric Rohmer ou Jacques Rivette. Durante esse período continuou-se a escrever sobre os autores, sobre o cinema americano, sobre a crise do cinema francês, e, acima de tudo, sobre a Nouvelle Vague. Os críticos escreviam sobre os seus colegas realizadores de forma entusiástica, clamando obra-prima, sempre que um novo filme de um membro do grupo saí-a da forja. Mas mesmo isso foi passando com o tempo. Os críticos da primeira fase foram saindo. Começaram a surgir novos nomes, menos ligados ao espírito inicial, já contagiados pelo cinema que irrompia do nada, e tomava de assalto o coração dos cinéfilos. Mas mesmo esses não aguentariam muito.


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Daniel Filipachi em entrevista


O Maio de 68 iria, como em tudo, reforçar clivagens. Godard corta relações com Truffaut. Resnais e Rohmer afastam-se das lides e voltam-se para a televisão. E em 1969, Daniel Filipachhi tenta um golpe de estado na redação. Golpe falhado, Filipachi é expulso, e com ele saem muitos dos críticos que tinham ficado. A revista fecha, e quando é reaberta, está na mão dos maoistas, veneradores de Godard – pelo menos até ao final da sua “fase Vertov”. Depois de acusada como revista de direita na década de 50, os anos 70 foram marcados por um extremismo de militância que afastou dela, todos os que inicialmente lá tinham colaborado. No final dos anos 70 a situação ameniza-se. Alguns veteranos voltam, pontualmente, mas já nada era como antes. O espírito dos Cahiers há muito que tinha desaparecido, um pouco ao mesmo tempo que o espírito pioneiro da Nouvelle Vague se banalizava, até perder todo o sentido.


Escola Artistica - Os Manifestos Base : O que escreveu Truffaut


Um pouco filho de Le Camera Stylo, François Truffaut cedo percebe que o mundo do cinema atravessava um período de fortes mudanças. O conflito entre o cinema como indústria e o cinema como arte era cada vez mais evidente.


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François Truffaut


O sistema privilegiava o sistema de produção, no caso francês, com filmes de grande orçamento, adaptações de sucessos literários, filmes sem alma nem coragem. Filmes de argumentistas, falsos-adaptadores de obras maiores. Do outro lado estavam homens, autores, capazes de ter uma idéia original, ou de fazer uma adaptação fidedigna, sem grandes orçamentos mas com imensa vontade de olhar para o futuro.
Talvez por isso, surja como algo natural, o texto que se tornaria no verdadeiro manifesto da
Nouvelle Vague. Escrito pelo maior dos jovens críticos, onde as luzes estão apontadas para os erros, mas também, para as soluções. Une Certaine Tendence du Cinema Français é uma sucessão de frases de uma violência absolutamente poética. Com a alma ferida, qual cinéfilo órfão, Truffaut não perdoa, nem por um breve instante, o cinema produzido em França pelo sistema, um cinema que se auto-intitulava de realismo-psicológico, mas que “nada tem, nem de realismo, nem de psicologia.”
Ao longo do texto, publicado nos
Cahiers du Cinema em 1954, fazendo imediatamente do jovem critico, um alvo a abater pelo sistema, e um pioneiro arrojado para os jovens da Nouvelle Vague, Truffaut critica o que chama de “processo de equivalência” das falsas-adaptações dos argumentistas da época – os já citados Jean Aurenche, Pierre Bost, Jacques Sigurd, Henri Jeanson, … - e lança daí as bases para provar que há uma outra forma, muito mais acertada, de se criar cinema. E criar porque, para Truffaut, o cinema é antes de mais, arte. E por isso, quem cria filmes, é seguramente um autor. Uma idéia que vai desenvolver no ano seguinte, também nos Cahiers, no seu texto Ali Baba et La Politique dês Auteurs.


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Pepe le Moko


Se Une Certaine Tendance du Cinema Français é uma fortíssima critica à forma de se fazer cinema em França – e Truffaut, que há época teria já visto mais de dois mil filmes, ele que ainda não tinha 22 anos, era o homem certo para falar do cinema do passado, mas também do cinema do presente – a verdade é que o texto é muito mais do que isso. Este ataque, é não só um apontar diretamente o dedo a quem faz mal, mas também, lançar luzes sobre quem faz bem. E por isso, surge de forma naturalmente, um ano depois – em Abril de 1955 – o seu segundo manifesto, aquele que mais marcará a Nouvelle Vague, por ser no fundo a sua essência.


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Em Ali Baba et La Politique dês Auteurs o enfoque é dado aos autores, os verdadeiros artesões dessa arte que é o cinema. Partindo da análise crítica a Ali Baba, filme de Jacques Becker com o conhecido ator Fernandel no principal papel, Truffaut passa à defesa da “política de autores”. Nesta dissertação, e partindo na idéia de Giraudoux, que há muito defendia “Não existem obras, só existem autores”, o jovem critico valoriza o trabalho do artista na concepção do filme. É a ele que devem ser imputados todos os méritos ou deméritos, no sentido que, desde o momento em que a idéia começa a fervilhar na sua mente, até ao dia da exibição ao público, todo o trabalho leva a sua marca. Sem interferências de produtores, distribuidores, argumentistas, externos à realidade do que é pensar e fazer um filme. E assim, Truffaut lança as bases do que viria ser a própria realização da Nouvelle Vague. Um processo extremamente pessoal – basta olhar para os argumentos de Godard, Resnais e Truffaut para ver ali, cunhada em todos os frames, a sua marca bem vincada. Um processo verdadeiramente artístico.


Escola Artistica - Os Manifestos Base : La Camera Stylo


Num notável artigo de Michael Marie, percebemos o porquê do conceito de escola artística aliado ao movimento da Nouvelle Vague. Este movimento tem uma base programática, com base nos manifestos de Astruc e Truffaut. Tem um conjunto de inspirações, primeiras obras e artistas facilmente assimiláveis. Tem um teórico base – Bazin - e um texto chave – Un Certaine Tendence du Cinema Français. Tem adversários, suporte de divulgação – os Cahiers – e um conjunto de obras que os consagram como uma nova corrente. Vale a pena falar um pouco sobre tudo isto.

Para muitos a Nouvelle Vague, ou pelo menos o seu espírito inicial, define-se bem em três textos, belíssimos textos, publicados não só nos Cahiers, mas também no L´Écran Française. Textos que exploram as falhas do panorama cinematográfico da época, mas que, muito mais importante que isso, lançam luzes para o futuro. Estes verdadeiros avisos à navegação, estes faróis inamovíveis, esta análise critica da forma como se faz e como se olha para o cinema, dá imediatamente a idéia de que algo se está a passar. Ninguém se atreveria a pensar ainda numa Nouvelle Vague – apesar de Godard dizer mais tarde que todos os jovens lobos já se preparavam para se tornar mais do que simples críticos – mas ela começava a desenhar-se, não timidamente, mas de forma assumidamente alternativa e original.


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Alexander Astruc


O primeiro destes manifestos é da autoria de Alexander Astruc. Mais velho que a geração de Truffaut ou Godard, Astruc será visto como um S. João Batista do movimento da Nouvelle Vague. É ele que dará os primeiros passos, que levantará as primeiras questões, e que dará as primeiras luzes. Para muito o seu La Camera Stylo é o documento inicial da Nouvelle Vague. Para outros, é um pré-inicio. A Nouvelle Vague já está ali sem estar. Até porque Astruc será mais tarde, curiosamente, afastado da ribalta pelos mesmos jovens que ajudou a lançar. Curiosidades da vida.
Mas, de qualquer forma,
La Camera Stylo é um texto fundamental à sua época. Estamos no ano da abertura da Cinemateca, da revitalização do Festival de Cannes, ano fundamental para a definição do cinema francês. Neste trabalho memorável e verdadeiramente futurista, Astruc delimita bem a análise da realidade cinematográfica a um antes e um depois. Um antes, onde a própria vanguarda “era já uma retaguarda”. Um depois onde se procura alargar o próprio conceito de cinema, para algo bem mais vasto do que a transição de imagens numa fita. Astruc detecta essa mudança, não só pela evolução técnica da época que permitiriam que autores dessem largas à sua imaginação - “Descartes fechar-se-ia no seu quarto com uma câmara de 16 mm e película, e escreveria o Discurso do Método em filme, uma vez que só o cinema o poderia exprimir convenientemente” - mas também nas obras que estariam a marcar esse período de transição na linguagem cinematográfica.


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Les Quatrecents Coups é um exemplo de um filme inspirado no pensamento de Astruc


E falando-se de cinema, tem-se de falar da linguagem cinematográfica, um conceito que evoluiu desde o período mudo até hoje, mas que nunca soube ser consensual. O que é cinema passa pelo que é a linguagem do cinema. Qual o verbo, o sujeito, o complemento direto desta complexa gramática? Astruc deslindra nas obras de Orson Wells e Jean Renoir uma capacidade de descobrir todos os truques desta linguagem. Algo extremamente importante, especialmente se tivermos em conta que será a jovem Nouvelle Vague, muito influenciada por este texto – e que no fundo, o complementará, fazendo dele quase uma profecia – a partir para uma profunda reformulação da gramática cinematográfica. Afinal, não foi Godard que se vangloriou de ter acabado com o raccord ?


continua...

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